terça-feira, 30 de agosto de 2011

Creoula - parte I "O Primeiro Impacto"

Não creio ser a loucura que move 40 pessoas a irem de livre vontade passar 20 dias em regime de exclusividade com gente que não conhece, 17 dos quais a bordo de um veleiro de mil-nove-e-muito-tempo-atrás. Por mim, posso dizer que sinto nas veias sangue de descobridores. O mar sempre me fascinou e o chamamento que ele gritou aos homens que nele quiseram navegar, também eu o sinto.

Nunca tinha embarcado, a não ser nos verões quentes da minha infância, num barquito de madeira a motor que, na praia que ainda hoje continua a ser a minha, ia até "lá fora" e voltava em pouco menos de nada. Chorava baba e ranho a viagem toda tal era o medo. Depois disso, só mesmo ir apanhar ondas para a zona dos surfistas num barco de borracha sem fundo e com 7 ou 8 em cima dele. Está bom de ver que quando me perguntavam se eu já tinha embarcado alguma vez, negava-o sempre, sob pena de me enfiarem num colete de forças a viagem toda.

Estranhamente, no dia em que embarcamos, não senti a ansiedade nem o nervosismo atacarem. Tinha muita vontade de entrar no navio, conhecê-lo, saber o que me (nos) esperava.
À primeira vista, é incrivelmente pequeno! É assustador estarmos todos perfilados, de mochilas às costas e expectativas nas mãos, e ver o que na altura pareceu um barquinho estreito e curto e saber que ia açambarcar com 90 pessoas.


Não sei se já entraram num navio e/ou se têm presente a prancha de acesso a ele. É estreita, coxa, abana e não é das coisas mais práticas de se andar em cima, ainda para mais se se leva uma mochilona às costas. No entanto, tudo correu bem, para grande espanto meu e das minhas vergonhas. Dentro do navio, o pânico adensa-se: o convés está cheio de cabos e amarras e semi-rígidos a ocuparem o pouco lugar disponível, e mais barquinhos de madeira (que agora sei serem os doris, dos tempos da pesa ao bacalhau), e já se sente uma tímida ondulação a querer mandar mais que nós nas nossas pernas. Mandam-nos ir pousar as trouxas à nossa cama, e só não tropecei na porta e pelas escadas abaixo porque salvei um passarinho da morte certa há anos atrás e fui finalmente recompensada. As portas do convés para o interior são altas. Embora com um degrau, dão-nos acima do joelho, sensivelmente. As escadas são a pique e os degraus estreitérrimos.

[a foto está tremida, porque eu era bem capaz de estar a tropeçar quando a tirei]

Os beliches são de três camas e eu, que não gosto de dormir na da baixo nos de duas por causa dos abafos que me dão, fiquei precisamente na de baixo num de três, que é para a terapia ser de choque e deixar de ser piquinhas.

[Não consegui apanhar os três beliches, porque o espaço é tão curto que não deu para melhor.
A minha cama é a de baixo. Convém frisar que esta foto foi tirada no último dia, daí o lençol estar todo arruinado (o que, aparentemente, não é desculpa, porque a de cima está impecável...). Mas não obstante!
De notar que as cortinas azuis do lado esquerdo são outro beliche, ou seja, eramos 6(!) miúdas num espaço onde desapertar o soutien é uma empreitada para a qual a melhor contorcionista asiática teria que treinar a vida toda, sem certezas de sucesso. E nós? Sim, nós conseguíamos...]

A saída de Lisboa é magnífica! Há lá vista mais bonita para a cidade, que a do Tejo! Passar por baixo da 25 de Abril com muito e muito trânsito lá em cima também é coisa para se deixar guardada por muito tempo na caixinha das memórias.
A única pena que tive foi não termos ninguém saudoso na nossa partida, a menos de uma mulher de um marinheiro e a RTP cujas reportagens se não viram, vo-las dou a conhecer agora: em directo (na qual somos "40 jovens") e em deferido (onde consta que somos "52 jovens", mas garanto-vos porque lá estive e sei, que das 10h da manhã para as duas da tarde, ninguém entrou no navio).

Tivemos logo que puxar cabos porque diz que o Creoula é um veleiro e os veleiros querem-se a aproveitar o vento, e entre berros de "entra com a boca" ou "segura a pena" e "folga o guardim", lá nos fomos sentindo perdidos. Parecia impossível alguma vez habituarmo-nos àquilo tudo. A coroar tudo, parecíamos uns bebedolas a andar aos S's, a ir contra tudo o que nos segurasse e amparasse. Mas, o que é delicioso, é ver os cuidados que os marinheiros têm com os cabos, o quão bem deles tratam.

As mesas têm rebordos salientes para que nada caia delas. Logo na segunda ou terceira refeição, rolavam pêssegos pelas mesas fora e chegar até elas com a sopa toda dentro da malga era razão para festejar.


Tudo tem que estar preso, fechado, protegido contra o caprichos do mar.

A primeira imagem que tive do Comandante do navio foi à noite. Estava eu na Ponte, que é o local dos aparelhómetros todos do navio (radares, sistemas informativos de todo o género, e etc), ao meio da qual há umas escadas. A páginas tantas, e enquanto um Tenente nos (a mim e a outra coleguinha do meu grupo) explicava as funções de todos os traços luminosos e afins, ouve-se uma voz vinda das profundezas "Boa noite. Tudo bem?" Eu viro a cabeça para trás, e vislumbro uma sombra corpulenta emergir da luz, com um cachimbo numa mão e envolta toda ela num casaco vermelho, que se houve noite fria, foi aquela. Fiquei boquiaberta e maravilhada. O Comandante! De vermelho e a fumar cachimbo!!! Podia ser melhor? Não, não podia.

A primeira sensação que se tem na cama é, pela certa, a que enquanto bebés temos num berço a ser embalado. É delicioso. A menos quando se vai a passar a ponta de Sagres, que quase se cai abaixo da cama, e quando tivemos que fazer tempo à entrada do Estreito de Gibraltar, que o vento e o mar estavam terríveis e não nos deixaram passar.

Noutro dia, contar-vos-ei como é tomar banho em alto mar e usar a casa-de-banho, e as tormentas do Levante.

sábado, 27 de agosto de 2011

Com os pés bem assentes na Terra

Voltei.

Nem sei que vos diga. Conheci-me melhor, conheci os meus limites, vastos, agora que os sei, como o próprio mar. Viajei em meio líquido, dissolvi-me em sal, fundi-me com o navio com os meus pés descalços no convés. Não houve mais nada durante todos aqueles dias, o Mundo éramos nós. O Creoula ensina-nos a relativizar tudo. Senti-lhe a força e o poder do mar no leme, icei-lhe as velas, safei-lhe cabos, poli-lhe "amarelos". Ouvi-o gemer à força das ondas que, impelidas pelo Levante, não nos deixaram ir a Ceuta. Nunca tive medo. Apaixonei-me por ele.
Dormi num "sarcófago", único lugar só meu, que à noite me embalava ora doce, ora rispidamente, que o Atlântico tem muita personalidade.
Dormi de olhos abertos quando devia estar acordada, comi alarvemente, tropecei nas minhas pernas cuja vontade própria se dissipou no embalo do mar, estou negra de pisaduras e preta do Sol.
Vivi.

Pode ser que um dia vos conte mais pormenorizadamente certos momentos, sem nunca vos deixar esquecer que o que se passa no Creoula, fica no Creoula. Agora, ainda me sinto como parte de uma relação que acabou, e preciso de tempo para fazer o meu luto.

Deixo-vos só um lipdub que filmamos a bordo. A música faz parte da banda-sonora que nos acompanhou quando nem as ondas de rádio chegavam onde estávamos.
Peço só a quem me conhece e reconhece no vídeo, que contenha os comentários, sim? Que eu conheço-vos de volta, e puxei muito pelo físico a bordo, e dou-vos um belo dum arraial de porrada se quiser.


sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Heróis do Mar

Julho de 1497, Caravela Bérrio - Vasco da Gama empreende o Caminho Marítimo para a Índia

Abril de 1500, numa Caravela qualquer - Pedro Álvares Cabral, por nabice ou matreirice, engana-se e vai ter ao Brasil

Agosto de 2011, NTM Creoula - Raquel põe a Marinha Portuguesa em alerta máximo, numa viagem até terras Mouriscas, Mediterrânicas e Sul-Europeias



Uma viagem desta envergadura exige preparação. Já tenho comigo as braçadeiras da Heidi, e tenciono embarcar com elas postas, só assim para marcar posição: "quem é a parvalhona do grupo?" Pumba, é aquela das braçadeiras.

De mais a mais, levo o "Moby Dick" para ler, a "We All Live in a Yellow Submarine" para despertador e a banda sonora do Pirata das Caraíbas para momentos de descontracção.

Quando chegar, conto ter a pele tisnada pelo sol e pelo sal, uma tatuagem no braço esquerdo em forma de âncora, sabor a rum na boca enquanto dela me saem "Aye's", "Matey's" e soluços vergonhosos, e estórias, muitas estórias para contar.

Até ao final de Agosto, me hearties!

(não sei porque comecei isto com os Descobrimentos e acabei com Piratas...)

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Quando eu começo a espiralar

Facto: eu tenho um sinal na coxona, e volta e meia quero mostrá-lo ao dermatologista para que nenhuma ruindade se atreva a apoderar-se dele.

Problema: que cuecas vestir para ir ao dermatologista.

É que... é um dermatologista! Já não acho muita piada a ter que me despir para quem não está nem aí (e nem convém que esteja), mas há especialidades e especialidades. O senhor quando escolheu a dele não pensou nas cachopas que têm sinais nas coxonas. O senhor estudou para ver juventude borbulhenta, não cachopas despidas! E, vai daí, fico sem saber. Umas sóbrias, é muito deslavado, recuso-me a usar disso; umas coloridas, parece que fui apanhada de surpresa; umas sexy, ainda o distraio, e quero mesmo é que ele olhe para o sinal; umas do tempo da minha avó, não tenho. E não pensem que isto é fazer uma tempestade num copo de água! Porque, imaginem o cenário: eu, de pé, sem calças e de costas para o homem, a pensar em sombras de palmeiras, horizontalidade e relva acabada de cortar, enquanto trauteio interiormente a marcha fúnebre do Chopin. O homem, sentado com a cabeça ao nível do meu rabo com uma mão no aparelhómetro (no que vê os sinais, oh gente imoral!) e a outra vá-se lá saber onde.

Espelho meu, espelho meu, haverá alguém mais paranóico do que eu?