terça-feira, 13 de setembro de 2011

Creoula - parte IV "As Sensações"

Imaginem um tubo de ensaio. Dentro desse tudo estão vidas já criadas e consolidadas, construídas com todas as peças que foram encontrando ao longo do tempo que por elas passou. A esta incrível diversidade, juntaram-se-lhes denominadores comuns: o tempo, as situações, os momentos, os imprevistos, o espaço.
O que temos, é aquilo que, na voz de quem sabe no-lo foi dito quando ainda mal déramos conta do que se passava: 40 viagens individuais e não uma só.

A minha, portanto, posso então dizer que a senti como sendo impactos e percepções, construções e adaptações, vivências e tudo mais que até podia acontecer em dias vulgares e "normalizados" (mais do que "normais"), mas em velocidade mach 3. Explico-me: não ponho em dúvida que, ao longo da minha vida futura, fossem acontecer situações que exigissem de mim o mesmo, mas nunca, nunca! com a intensidade que o Creoula imprimiu. Jamais me sentiria tão capaz de as resolver, de as absorver, de sorver o maravilhoso e de encolher os ombros de modo altivo face ao menos bom.
Desta viagem, não saí diferente. Sou eu mesma, sempre eu, sempre igual, mas com outra consciência do que consigo atingir. Mas, acima de tudo, aprendi o que muitos não aprendem numa vida inteira. E, como frente a tanto que todos os dias via e sentia, dizia, "se não fosse por mais nada, só por isto já valeu a pena!" E sim, esta viagem fez-se de "istos" que valeram muito a pena.

Uma das melhores sensações é a de "conduzir" o navio. Ter o leme nas mãos e sentir-lhe a robustez. Acrescido a isto, o leme é uma das zonas de onde melhor se percebe o movimento do navio, porque se tem uma visão quase desimpedida para o mesmo (da popa para a proa, vulgo "de trás para a frente").
Tive a sorte de estar ao leme na altura em que andávamos não aos círculos, mas dentro dum quadrado imaginário, à espera de melhor humor do Levante, para passarmos o Estreito. Chegados à "aresta" do quadrado, é necessária uma viragem de 90.º, e sentir o navio a virar, vê-lo a inclinar-se na água, ver as velas cederem às rajadas de vento que se começavam a sentir de outra direcção, olhar para o radar e para a bússola e ver os graus passarem, é incrível!

No lado oposto, na proa, descobri certa vez, e se bem me lembro, à conta duns golfinhos que apareceram, que era o melhor sítio para injecções de adrenalina, ao jeito de divertimentos de feira popular -é uma boa analogia, mas não tem nada a ver...-. Tenham presente os balancés e o movimento deles, e percebem o que digo. Nas extremidades, sente-se muito mais o movimento, principalmente o descendente. Ficámos (eu e um outro viciado naquele sensação) um horror de tempo, naquele dia (que, isso sim, lembro-me, foi quando estávamos a passar ao largo do Algarve, quem sabe até já ao largo de Huelva ou mesmo Cádiz), ali inclinados borda fora, a sentir a leveza ímpar que nos levava de encontro ao mar, e quando parecia mesmo que lhe íamos tocar, o amparo no peito, como que um abraço, puxava-nos de volta acima, à tona da água, ao flutuar que pouco durava pois que logo a seguir vinha mais uma onda encorpada que deixava para trás o fosso para o qual o Creoula nos atirava e salvava logo de seguida.

A proa é o local do vigia. Há um sitinho privilegiado para essa tarefa, mas há também o telhado duma das entradas para o interior do navio, que eu sei que tem um nome, mas que agora me escapa..., no qual ficávamos muitas das vezes que essa função nos competia. E daí, víamos os 360.º de mar à nossa volta, o horizonte a separá-lo do céu, dissessem-me que estávamos dentro dum souvenir daqueles que se abana e se entontecem pseudo-floquinhos de neve, purpurinas ou o que seja, e eu acreditava. Tenho um vídeo, mas não é de longe e muito menos de perto, fiel ao maravilhamento que se sente ao se estar lá, ao nos darmos conta daquilo. E eu queria ter subido muito mais alto para, sem ter que rodar sobre mim, ver a curvatura da Terra.



Uma sensação mais táctil do que romantizada, vá..., é a sensação de chamemos-lhe viscosidade, não o sendo, de tudo o que é lambido pelo vento marítimo. É uma humidade inigualável, que se entranha no cabelo, envolve as pernas, os braços, abrilhantando-os, calça as mãos, impossíveis que se tornam de alguma vez estarem lavadas e limpas. E está por todo o lado. E, se dúvidas houvesse, saberíamos instantaneamente, mal saíamos para o convés, que estávamos no meio do mar.
E quantas vezes é forte e frio, e vem contra a cara, e chapinha contra o costado. Mas, às vezes, acalma demasiado o mar. Faz da nossa passagem uma perturbação insipidamente efémera, contrastante com o carácter salgado que tantas lágrimas, segundo o poeta, temperou.

No interior, mais uma vez na altura do Levante -acho que ele se está a tornar monopolizador, o safado!-, estava eu sentada à entrada da Biblioteca que, como todas as portas, relembro, tem um degrau, e olhei em frente para uma escotilha. Era de madrugada, pouco depois das 7h, e ainda estava aquele tom azulado no céu, de quando o Sol está mais ensonado do que quem madruga, e parece-me ver água. Estranhei, pois que a água nunca andava ali por cima (ou, melhor, o navio não nunca andava tão abaixo da linha de água), e deduzi sem sombra para dúvidas que devia ter lavado mal os olhos e o sono que não tinha ficado na almofada me estava a pregar partidas. Pisquei os olhinhos, semicerrei-os e sim, era mesmo água. Naquele momento, estávamos debaixo de água, e não sei explicar porquê, sorri e fiquei encantada com o facto. Quando fizerem uma "Universidade Submersa no Mar", estou lá!

Mas nem todas as sensações são boas. Há aquelas, que mesmo tocando cá dentro, fazem-no na parte má do assombro. Neste lado do espectro, tenho a sensação de impotência ao ouvir no rádio um Mayday. É incrível, porque pode estar uma turma de putos do ciclo a serem eles próprios, i.e., barulhentos, 2 tenores a fazer exercícios de aquecimento de voz, um baterista a treinar para o concerto que vai dar logo à noite, e um reco-reco a aparvalhar, que mesmo assim, quem trabalha na Ponte consegue ouvir o rádio! No entanto, um "Mayday Mayday Mayday", cala toda a gente, fica tudo de ouvido à escuta, a voz trémula que o pede desperta vontades de dizer "não te preocupes, já aí vou!", e saltar borda fora, mas a ligação está péssima, não se percebe o local onde ela diz estarem, as coordenadas não chegam até nós, o ECDIS não mostra o navio, não sabemos se é perto, se é longe, às tantas, no meio do ruído de estática cremos perceber um nome, procura-se no mapa, não existe, "Mayday, Mayday, Mayday", "Please, transmite your coordinates!", ouve-se que o motor da âncora avariou, não a conseguem subir, que estão perto dumas rochas e o mar está a ficar revolto e está a atirá-los de encontro a elas, são dois ocupantes, "Mayday, Mayday, Mayday", procuram-se soluções, não as há, "O que fazemos?", "Nada", dizem-nos ainda mais abatidos do que nós, "Mayday, Mayday, Mayday", finalmente no rádio o serviço de Busca e Salvamento de Ibiza faz saber que os vai acudir, isso quase que desanuvia o ar, mas é impossível, transmitem-lhes que têm que abandonar o barco, "abandon ship?!", pergunta a voz trémula, "Yes", diz uma voz autoritária, "You MUST abandon ship!", "but...", "You MUST abandon ship!", a dor que deve ser ter que sair, saber que tudo vai ficar por ali, que seja só o barco, mas lá se pensa nisso em alturas de aflição!, só posso imaginar o pânico que deve ser, abandonar soa a desistir, abandonar torna tudo mais real.
Não sei o desfecho da estória. Ninguém ficou a saber. Se a minha vontade mandasse, tudo se resolveu pelo melhor. E quero acreditar que sim.


Houve mais, muitas mais!, algumas impossíveis de arrancar de lá e contar, algumas outras só para quem lá esteve, umas poucas para uma meia-dúzia, talvez nem tanto, de sortudos que as ouvem da minha boca, mas todas elas minhas e inesquecíveis!

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