sábado, 10 de novembro de 2007

Literatura

Eu leio. Eu sou uma pessoa que lê, que gosta de se instruir, que acha que se a leitura não servir para mais nada, serve pelo menos para passar tempo. E que boa qualidade é essa, direi eu! Não imagino as minhas intermináveis viagens de comboio sem algo para fazer, e ler é óptimo entretenimento, para além de não fazer esse tempo soar a perdido. De mais a mais, e em referência às ditas viagens, concordará comigo quem usa transportes públicos, principalmente em viagens de maior duração, que chateia incongruentemente ouvir a música que sai dos phones de quem por vezes nem vai assim tão próximo de nós. Deixo desde já aqui o aviso que, e dada a minha falta de paciência e conformação, qualquer dia desato a ler em voz alta, a ver se os estupores que querem chegar a surdos antes de chegarem a velhos se incomodam com a minha facadinha na liberdade deles! Mas adiante...
Eu escolho livros que me pareçam de algum modo interessantes, e nessa panóplia de interesse surgiu-me, desta vez mais recente, o "Memorial do Convento", do toda-a-gente-sabe José Saramago. Qual foi o interesse que eu vi nisto? Talvez não mais que regozijo pessoal ao, chegado o términus da sua leitura, eu poder dizer "eu li José Saramago". Por muito que se fale mal do senhor (eu própria não o suporto enquanto homem), e da sua forma de escrita, a minha curiosidade falou mais alto. Eu estava à espera de tudo e mais alguma coisa, mas do que estou a ler, não esperava não... (convém só acrescentar que estou a gostar... E que o livro não é todo como o pedacinho que se segue!) Passo então a desenrolar-vos um trecho do dito livro que quase me fez passar umas quantas vergonhas a engolir o riso e que, se algum de vós o quiser ler, não vos vai estragar a estória... Deixem-me só situar-vos temporalmente, tudo isto se passa no tempo de D. João V, ou seja, século XVIII.

...e foi o caso que certo clérigo, costumeiro em andar por casas de mulheres de bem fazer e ainda melhor deixar que lhes façam, satisfazendo os apetites do estômago e desenfadando os da carne, e sempre pontualmente dizendo sua missa, quando lá lhe parecia alçava levando os bens que lhe estavam à mão, e tantas fez que um dia a ofendida, a quem muito mais se tirara do que o tudo que dera, tirou ela ordem de prisão, e indo os oficiais e agarradores a cumpri-la por ordem do corregedor do bairro, a uma casa onde o clérigo já estava vivendo com outras inocentes mulheres, entraram, mas tão desatentos à obrigação que não deram com ele, que estava metido numa cama, e foram a outra onde lhes pareceu que estaria, assim dando vaza para que o padre saltasse, nu em pêlo, e, disparando escada abaixo, a murro e pontapé limpou o caminho, ficaram gemendo os quadrilheiros negros, mas conforme puderam, caiçando, correram atrás do padre pugilista e garanhão, que já lá ia pela Rua dos Espingardeiros, e eram isto oito horas da manhã, começava bem o dia, gargalhadas pelas portas e janelas, ver o clérigo a correr como lebre, com os pretos atrás, e ele de verga tesa, e bem apeirado, benza-o Deus, que um homem tão dotado o lugar dele não é a servir nos altares mas na cama de serviço às mulheres, e com este espectáculo padeceram grande abalo as senhoras moradoras, coitadas, assim desprevenidas, como desprevenidas e isentas estariam as que se achavam rezando na igreja da Conceição Velha e viram entrar o padre resfolgando, em figura de inocente Adão, mas tão carregado de culpas, sacudindo badalo e guizos, à uma apareceu, às duas se escondeu, às três nunca mais foi visto, que nesse passe de mágica deu a diligência dos padres que o recolheram e deram fuga pelos telhados, já vestido, nem isto é sucesso que cause estranheza, se em cestos içam os franciscanos de Xabregas mulheres para dentro das celas e com elas se gozam, por seu próprio pé subia este padre a casa das mulheres que lhe apeteciam o sacramento, e para não fugirmos ao costumado fica tudo entre o pecado e a penitência, que não é só na procissão da quaresma que saem à rua as disciplinas excitantes [isto é uma referência a outra estória contada mais para trás no livro...], quantos maus pensamentos hão-de ter de confessar as senhoras moradoras da baixa de Lisboa e as devotas da Conceição Velha por tão rico padre terem gozado com a vista, e os quadrilheiros atrás dele, agarra, agarra, quem puder agarrá-lo para uma coisa que eu cá sei, dez padre-nossos, dez salve-rainhas, e dez réis de esmola ao nosso padre Santo António, e estar deitada uma hora inteira, com os braços em cruz, de barriga para baixo como à prosternação convém, de barriga para cima que é posição de mais celestial gozo, mas sempre levantando os pensamentos, não as saias, que isso ficará para o próximo pecado.

Ai é disto que os senhores de Estocolmo gostam? Percebem agora de que matéria são feitas as ponderações para os Prémios Nobel? Pois... A partir de agora, e de cada vez que eu aporcalhar uma qualquer conversação ou seja lá o que for, não me lancem olhares chocados: pensem que estou a aspirar a um Nobel! :D O José Rodrigues dos Santos e "A Filha do Capitão" já tentaram à brava, entenda-me quem também o sabe...


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