domingo, 4 de setembro de 2011

Creoula - parte II "A Personalidade do Atlântico"

Quem já passou férias no litoral Oeste de Portugal conhece o feitiozinho daquele que nos banha. Tanto está impávido e sereno, como se estrebucha todo e fica de mal com a vida.
Lá longe onde são poucos os que têm a sorte de o conhecer, ele tem mais tendência a mostrar-se bravo -a bem dizer, como se quer um Oceano que se preze de o ser-, até porque, e apesar de banhar muitas mais costas para além da nossa, temo-lo por Português, e Português que é Português é tendencialmente abespinhado.

Acresce ainda outro factor: o Sr. Vento. Ora quando o Sr. Vento e o Sr. Atlântico estão em sintonia, perfeito, içam-se as velas e até se chega ao destino antes do previsto. Quando se insurgem um contra o outro, temos o Creoulinha a balouçar, quem vai dentro dele a perder o centro de gravidade, uns quantos ainda à luta com o ouvido interno e as chatices que isso traz, e uma sensação de pequenez incomparável.

De Lisboa à Ponta de Sagres, correu tudo bem, sendo que "bem" é andar contra tudo e todos, perder a noção do que é uma linha recta, pisar pernas e braços e ombros e coxas e tudo o que ampare desequilíbrios -aproveito desde já para deixar um conselho a quem vá embarcar: engordem! É muito menos doloroso ter chicha e bater em tudo quanto é parede e esquina, do que não a ter e entalar a pele entre o osso e o encosto destrambelhado-, ter que aprender a não acordar estremunhado e dar uma cabeçada na cama de cima, ter que aprender a entrar na cama de cabeça, porque se se for de rabo nunca mais se dá a volta e arriscamo-nos a ficar entalados em posições constrangedoras, e toda uma panóplia de situações que deixa quem está habituado ao chão dançante à beira de um ataque de riso. Se forem como eu e se se rirem de vocês próprios, então tudo bem, não há nada melhor do que aqueles primeiros dias!

Acabara eu de me deitar certa noite, e nos 3 milissegundos que mediavam essa acção com a de adormecer, pensei "é mesmo bom dormir embalada". Eis senão quando, a meio da madrugada, sou acordada por vigorosas sacudidelas. "Mas que raio?!", pergunta o meu Eu estremunhado ao meu Eu cheio de sono. Nenhuma resposta. Pensei "Raquel, já estás a ficar senil, mulher! Fecha os olhinhos e dorme, que o teu mal é sono". Pumba!, quase que sou atirada abaixo da cama. Pus-me à coca. "Quem anda aí?!" Nada... Sem deixar que a preocupação me invadisse, volto a fechar os olhos. Adormeci com as duas mão fincadas no lençol para não voar sarcófago fora, e de manhã depois da terceira pessoa a quem perguntei "sentiste as abanadelas hoje de noite?" o ter negado, calei-me muito caladinha enquanto sentia os olhares reprovadores pousarem em mim. Até um Oficial dizer "então, e esta noite? Dormiram bem? Passamos por uns quantos buracos! Esta estrada está muito má..." AHAH! "Vêem, insensíveis, como o navio abanou como... os navios abanam quando passam em águas tumultuosas?!" Quinzazero! A vocês dou quinzazero e de olhos fechados!

Ao largo do Algarve há demasiada calmaria. Até se tentar passar o Estreito de Gibraltar. São 13km de largura, um Oceano e um Mar a confluirem. Até aqui, nada que não se aguente. O problema, é quando surge o Levante. Ora o Levante é um safado dum vento que sopra pr'áqueles lados. "E safado porquê?", perguntais vós. Porque -e usando termos técnicos- vem de lá para cá, e nós queríamos ir de cá para lá. Peço-vos que imaginem: um navio de 67m de comprimento, de 500 cavalos de potência (uma doideira!), ondas de 4m de altura e vento de Força 8 (explico: há uma escala chamada Escala de Beaufort que "mede" a intensidade do vento. O máximo é F12, ou seja, furacão. Dá para ter uma ideia...). 'Tá? Pronto, então agora, mostro-vos o que acontece:



A melhor maneira de perceberem o movimento é olharem para a linha do horizonte. Isso e a entrada de água no convés...

E acreditem que impõe mais respeito a cava da onda do que a altura dela em si. O espaço vago que ela deixa, é magnificamente assustador.

Desse dia há uma fotografia excepcional que eu não sei quem tirou. E digo isto porque não quero os créditos dela por mãos alheias, e porque há uma certeza muito grande de que não fui eu, porque eu estava sentada ali ao lado.

[Sim, é um printscreen do YouTube, porque ela faz parte de um vídeo de fotos também feito a bordo, daí a minha preocupação em pô-la aqui seja bem próxima do zero]


E pronto, esse tal de Levante foi o responsável pela nossa não ida a Ceuta, paragem que eu tanto gostava de ter feito pela simples razão de pisar solo Africano, por muito que Ceuta seja Europeia.

Responsável por isso, e pela percentagem assustadora de enjoos a bordo! Eu não enjoei (ainda hoje estou para perceber porquê...) e quando o balanço do barco era de frente para trás e vice-versa, dizia um Oficial "pronto, vai começar o movimento que faz enjoar toda a gente". Já a mim, não. A mim dava-me sono... Virava-se tudo a favor do vento a dar de comer aos peixinhos, e a Raquel encostada a um canto a dormitar. Eu tenho problemas, pela certa que os tenho, só pode!

E agora imaginem o que é tomar banho com o navio a abanar como vedes! Enquanto se consegue esfregar com o tronco direito, vai-se andando. Com mais ou menos toques nas paredes, com mais ou menos dança de pés, a coisa corre. Quando se tem que passar para as pernas, das duas, uma: ou nos dobramos, e caímos para a frente; ou levantamos uma a uma, e tombamos para o lado. Seja qual for a táctica escolhida, fica-se sempre com as pernas e os pés mal lavados e mais galos e/ou pisaduras consoante o balanço. É só isso e lavar as mãos. Porque enquanto que o chuveiro debita água para onde o viramos, a torneira é estática e é a água que se deixa levar, tendo nós que ir atrás dela. Não parece difícil, mas há que ter em conta que se alia isso ao mexer de pés e ao bater no lavatório todo molhado com a anca. E lavar os dentes? Tem igualmente o chão a fugir, os pés a (tentar) compensar, o lavatório cheio de água, os toques de anca e uma escova cheia de pasta e uma boca qual cão raivoso cheia de espuma, a tentar ir buscar água à palma da mão que anda atrás do fio de água, enquanto se dá toques de cabeça no espelho e se parte o nariz de encontro à torneira, sem falar de que nos entretantos desta luta pode muito bem alguém querer entrar na casa-de-banho, atirar com a porta numa tentativa de se segurar ao subir o degrau da mesma, levarmos um encontrão, continuarmos com a escova numa mão, a espuma a cair pelo queixo abaixo, e sermos mais uma a lutar a luta inglória. Mas é giro! Eu, pelo menos, fartei-me de rir. A sério! Eu acho que se alguém entrava na casa-de-banho enquanto eu estava a tomar banho, devia pensar que eu não estava sozinha (ou, estando, que tinha muito jeito para me divertir), porque eu ria-me mesmo. Já nas outras peripécias, ria-me e fazia rir, o que me apraz muito também. Nunca "estamos todos no mesmo barco" fez tanto sentido.

2 comentários:

Anónimo disse...

sinto um pingozeco de inveja!! que grande aventura! :) Popsi

who's yo' mama?! disse...

Podes sentir, Popsi. Foi de facto fabuloso! :)