sábado, 6 de dezembro de 2008

Vou-te contar um segredo

O que sei de ternura, de desespero, de assombro, nasceu nesse tempo: um rebramir longínquo, reparem. Curioseava pelas ruas desta parte da cidade, até agora desconhecidas; tropéis de casaria de cor incerta, janelas baixas, com grades; uma tristeza mesquinha e fétida e criaturas que nem reparavam onde viviam. (...) Digamos que descobrira algo de imponderável: ruas profusas, sonhos diuturnos, a aflição rudimentar de vaguear por um sítio ignorado e desbravá-lo a só.

Cão Velho Entre Flores, Baptista-Bastos


Na Avenida das Tílias despidas, que de terra se faz por entre bancos de madeira vermelhos e desalinhados, ramos erguidos e verdes e amarelos nascidos de folhas quebradiças sob os nossos passos, e uma ou outra que na sua loucura ou fraqueza se desprendeu para a morte e ainda paira no ar, logo depois do som da água a correr cessar, dos patos e dos pavões se calarem, ergue-se todos os dias que indiferentemente passam por ela e lhe atiram raios de Sol ou gotas de chuva numa constante inconstância a que certamente já se habituou, lhe mostram pessoas que nunca para ela olham nem dela dão conta, uma capela. Triste, fria, cinzenta, com a mesma fronteira verde de buraco de fechadura enorme que a separa do Mundo profano como toda e qualquer capela o deve ser. Há no entanto algo de diferente nesta. Há a curiosidade. Há o frio na nuca e o arrepio nas pernas ao se chegar perto dela. Ao baixar a cabeça até à fechadura e sentir o cheiro de séculos na tinta da porta. Há o ar bafiento e gelado de calor humano que dela emana. Há um relance de vista poeirento. Há a estória que tudo isto nos conta, de reis e batalhas, e preces desesperadas e não atendidas, vontades que a Mão Divina não tocou, choros e cabeças baixas, joelhos doridos por tanto dado e tanto pedido. E há uma estátua. Esta capela é diferente. Sim, estão lá os bancos, mas não o altar. Sim, está lá a face condoída de dores sentidas e uma cruz. Mas em vez de um corpo nu, sofrido, encolhido até onde os cravos deixavam, está um homem de pé, de opa vestido, com a cruz a um ombro, a olhar a clarabóia por onde entra o Céu, com feições que dizem: "Eu fico aqui a tomar conta dela até Tu voltares. Mas bolas, se ela não é pesada!..."