sexta-feira, 30 de abril de 2010

Raquel e a Problemática do Passe

Quando me alapo no comboio ponho sempre o passe à mão. Primeiro, porque é prático e funcional; segundo, porque abomino quem só se lembra disso quando o sr. pica se chega ao banco e têm que andar à luta com as tralhas na carteira, todas nervosas, ou têm que se pôr de pé e escarafunchar os bolsos das calças ou dos casacos e dar cotovelões a toda a gente. É, mais que uma questão de facilitar, um pensar antecipadamente.

Se estiver sentada à janela, aproveito a borrachinha do vidro e faço o que todos os automobilistas detestam que os jovens que distribuem panfletos pelos carros estacionados façam: entalar a papelada na borracha dos vidros. Mais uma vez: é prático e funcional.

E quando ponho o passe a jeito, abro-o sempre para mim primeiro para ver quais são as direitas da coisa, para ficar tudo direitinho, impecável, e tudo e tudo e tudo.

E agora vocês perguntam: "Com todas essas picuices, é possível alguma coisa correr mal?" Ah pois é meus caros, ah pois é... E pior que correr mal, é ocorrerem três maus acontecimentos num só dia!

Começo o dia com a colocação do passe no sítio estratégico à janela. Nada de novo. O que eu não estava a contar era que houvessem borrachas que realmente funcionam e levam a sério a função de calafetar os vidros!
O sr. pica vem a aproximar-se, primeiro topam-no os meus ouvidos, depois topo-o pelo canto do olho. Quando lhe sinto a presença mais próxima, levanto os olhos do livro, chego a mão ao passe e oh diacho, que isto não sai! *choc choc*choc choc* mal se mexe o desgraçado. Tento com a outra mão, mais movimentos para cima, para a esquerda e para a direita, nada. Vou lá com as duas, continuamos na mesma. O sr. pica é travado por um andante que não dá sinal de vida, margem de manobra e tempo demasiado para me passar pela cabeça a ideia de lá ir com os dentes. Felizmente a minha sanidade mental, volta e meia, dá ares da sua graça, e acho melhor continuar no modo manual.
Foram precisos a força de dois braços e um levantar do rabo do assento para a porcaria do passe sair, e uma capacidade ainda maior para seguir fantástica depois da vergonha passada.

Este semestre só tenho aulas num laboratório, sempre o mesmo. E todos os laboratórios têm um varão para pôr os casacos, mas neste esqueceram-se dos cabides. Ora varão sem cabides pode ser interessante, mas a) não é na horizontal, e b) não o é, de todo, para pendurar casacos. Assim sendo, há uma bancada "reservada" para pormos a nossa tralha (FCUP, FCUP, só tu para nos criares como seres desenrascados ainda que disfuncionais no que toca a regras laboratoriais básicas...)
Acontece também que eu tenho um casaco que tem uns bolsinhos pequeninos na zona do peito, bolsos na vertical mesmo a jeito e com o tamanho certo para guardar o passe, permitindo o fácil acesso.
Finda a aula, pego nas minhas trouxas, incluindo o casaco, que vai no braço. Felizmente, repito, felizmente, e ainda que só depois de ter saído do edifício e de ter atravessado a rua, lembrei-me de apalpar os bolsos para ver se o passe não tinha caído. Murphy, seu safado, o passe podendo não estar lá, não está de facto. Toca a voltar para trás, subir o escadario, atravessar o corredor, e felizmente, repito, felizmente, o Professor ainda está no laboratório.
Vou à bancada-de-laboratório-que-no-decorrer-das-aulas-parece-uma-banca-da-feira, e perscruto exaustivamente. Passe de grilo.
Começo eu a, ironica e interiormente, a congratular-me por mais uma façanha digna de nota quando ouço: "Raquel...?"
Fito as orelhas feita cão que pressente o dono e vejo o Professor todo sorridente (como é, aliás, seu apanágio) a mirar por entre as prateleiras duma bancada, a perguntar-me "Não tinhas já ido embora?"
Passou-me uma única coisa pela cabeça. (não, não foi "olá... esta cadeira 'tá no papo!") Foi sim, EIA! O homem sabe o meu nome?! Fomos avançando pela bancada, cada um por seu lado, enquanto eu lhe respondia pois que sim, que tinha ido, mas que achava que tinha perdido uma coisa e que tinha voltado atrás para ver se a encontrava. E eis que me surge ele no términos da bancada e abana-me o passe em frente aos olhinhos. "Ah! Era mesmo isto...", disse, enquanto os cordelinhos intrincados do pensamento desfiavam a razão para o homem saber o meu nome...

De novo no comboio, preparo tudo comme il faut, e quando o sr.pica se aproxima e anda tudo atrás das carteiras e dos bilhetes e dos passes, eu, mais rápida que a sombra do próprio Lucky Lucke, zás! passe espetado p'rá frente.
Espero sempre que o sr.pica me dê a validação em jeito de aceno de cabeça para guardar o passe. Mas desta vez, ele pôs-se a inclinar a cabeça e a fazer uns trejeitos com a boca e eu pensei "ui, louco! Qu'é que tu queres homem?" e já me preparava para lhe piscar o olho, quando ele me diz "Está ao contrário..."

Não tivesse eu a capacidade de espanar as vergonhas que passo com um sorriso, e ia ser um problema!

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