quarta-feira, 9 de junho de 2010

Shhh...

Há uma casa que sabe muito. Lá fora, a rua é assim, nem mais nem menos que outra qualquer, começa e acaba onde acabam e começam outras duas. Coisas se passaram ali também, mas não embateram em nada que as guardasse. O prédio, esse, é assim, nem mais nem menos que outro qualquer. Os dias e as noites passam por ele, e com a luz trazem ou levam coisas diferentes. Quanto muito, a chave da porta sentiu uma maior inquietude, um compassar mais forte do coração que descoordena os movimentos da mão numa vez ou noutra mas, por ser pequenina -a chave, não a ânsia, quantas vezes desassossegada e sôfrega!-, não guardou nada com ela, não se interessa por pormenores que não sejam o dentado do seu flanco, tem mais é que ser boa e eficiente no seu trabalho de abrir a porta, a fronteira, a passagem ou o muro.

Foram as paredes que viram, o chão que se apercebeu, os sofás que sentiram, as camas que souberam. Entraparam-nos a essência prolongadamente momentânea e, agora, em dias e noites de ensurdecedor silêncio e acerbamentos melancólicos, ainda se divisam os sons, ainda se sentem os cheiros, a pele ainda se arrepia.
O medo que os índios tiveram de que as máquinas fotográficas lhes roubasse a alma, que em vazios os transformassem, o pavor da vida sem espírito e da morte sem sono, temo-lo nós de que as paredes falem.
Quem pode dizer que quando aquele momento é encurralado, numa máquina ou entre quatro paredes, os medos não serão bem fundamentados? Não fica ali aprisionado roubando-nos um bocadinho de nós, quem sabe não se conseguirá libertar um dia e espalhe a estória quando a História nada devia saber?

Esta casa sabe muito, muito que não convém que se saiba, muito que não se pode saber. Arranjaram-lhe boa solução, no entanto. Rasgam-lhe o papel e pintam-lhe as paredes. Arrancam-lhe a alcatifa e põem-lhe soalho. Remodelam disposições, inventam melhoramentos, escolhem cores e feitios e, se nada correr mal, se nenhuma desgraça vier e descolore as tintas novas, e risque o verniz novo e mude os sofás para onde estavam antes, estamos seguros na nossa história antiga, que ninguém dela nada ouvirá, quiçá um dia até nós a esqueceremos.

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