Há uns aninhos atrás, foi a
chaga que, anos volvidos, já mal se nota (excepto quando a minha mãe me pede para tirar a louça da máquina... "Não pode ser!!! Olha! Foi isto que aconteceu da última vez que o fiz!!!").
Agora, é um braço do tamanho que três braços teriam. E, pior do que isso, é ter perdido o cotovelo no meio de todo o inchaço que me ataca. Mais!, da outra vez, foi na mão esquerda. Era mais doloroso, mas era na mão cega. Agora é no braço direito, e embora a dor seja inexistente, é bastante mais incómodo.
Meto então pés ao caminho até ao Centro de Saúde, que por muito que o meu bom e ao mesmo tempo, estúpido humor me faça dizer que agora já sei como é que é ser gordinho e ter muita chicha nos braços, isto ainda me preocupa, e espero que quem me atenda me ponha boa. Sabendo que estas coisas nunca se fazem céleres, levo comigo o meu livrinho para não ter que ver programinhas da tarde da tv, e espero que o altifalante me permita entender o meu nome a ser chamado. A páginas tantas, "*
qualquer coisa imperceptível* *
o apelido espanhol e o português ditos como se fossem ambos como o primeiro* *
Con ssultório dos*". Mais rápida de reacção do que de pensamento, levanto-me com a certeza em crescendo de que "a coisa imperceptível foi 'Raquel'", e ala para o Consultório 2.
Há uma coisa muito interessante no que toca a numerar seja o que for: é prático. Há ainda mais coisas interessantes no que toca a numerar seja o que for: é rápido, eficaz, universal, não permite dúvidas nem trocas. E tudo isto funciona muito bem quando, neste caso, as portas dos consultórios, estão DE FACTO numeradas. Ora, quando não estão, bem podiam dizer "consultório 2", "consultório Aniki Bobó", "consultório Tamarin Imperador", que ia tudo dar ao mesmo! Mas, habituada que já deve estar a que os pacientes vagueiem pelos corredores de nariz no ar à espera da luz divina, a médica decide-se a vir à porta e, vendo-me, pergunta "Ráquel?" BAM! Si, presupuesto!, que sempre que me dá uma maleita qualquer, aparece-me uma médica Espanhola à frente. Elas vêem o meu nome e devem andar à porrada com os colegas Portugueses para me apanharem! Agora percebo o "nh" dito como "ñ" e o "z" lido "c"!
Entro, sento-me ainda tonta de ter virado a cabeça 500 mil vezes por minuto para tentar encontrar o Consultório a que chamam "2", ainda com o livro na mão e com o casaco feito um bicho inanimado no colo, já ela acabou de me perguntar "lo que ce passa?"
"É este meu braço que, desde ontem ao final da manhã, inchou muito", digo o mais pausadamente possível, e tentando que a característica palerma de que sou portadora, de apanhar tudo quanto é sotaque alheio e deles fazer o meu, não se me escorregue da boca para fora.
Ela olha para o braço, e desenha na cara a expressão "mas isso é um braço perfeitamente norm..." mas eis que olha para o esquerdo e ergue as sobrancelhas num "oohh!... Tu tens uns braços finguelinhas! Eh pá! Isso está MESMO inchado!!!"
É chato. É chato porque é chato dizer a uma senhora dos seus, vá, 40 e muitos - 50 anos, cujo braço em dias normais é como o meu triplicado, que de facto o normal do meu é ser magrinho.
Escreve no computador.
"Foste picada?" Não.
Apalpa, apalpa, apalpa, nada.
Escreve no computador.
"Se fizer isto, dói?" Não.
"E se fizer isto?" Não.
Escreve no computador.
"Então e se contrariares este movimento?" Também não.
"Fizeste esforços com o braço" Sim.
Mmmm...
Escreve no computador.
Continua a escrever no computador.
Já estou a pensar "esta mulher está a escrever um livro e é médica nos momentos de parca inspiração?" e zás!, espeta-me os polegares nas axilas e eu penso em todas as aulas acerca do Sistema Linfático que, agora e por segundos, gostava de esquecer, sob pena de magicar no que ela pode encontrar de mau por ali.
Nada.
Escreve no computador.
Pergunta-me: "Tens sentido alguma coisa anormal na mama?"
Respondo "Não tenho, não", mas já tenho o pensamento outra vez a mil à hora, que esta mulher está a ver é se me mata do coração com estas considerações todas, que às vezes era melhor a gente não saber tanto quanto sabe, que quanto mais sabe, mais preocupada fica, que é tudo muito bonito no papel, nos Power Point's, mas a esta altura já me dói tudo, tenho a senhora a apalpar-me uma mama e depois a outra e depois as duas ao mesmo tempo e mal a ouço dizer, ainda à minha frente, quase em cima de mim, e sentindo com toda a certeza todo o meu desconforto e pânico, "isto se fosse numa perna era muito mais fácil" e mal a vejo sentar-se e a escrever outra vez no computador.
"Não sei o que poderá ser..."
Valha-me o Santo que fez de hoje um feriado, que coisa ruim afinal não é! Foi aquele anjinho por que passei e que ia para a procissão, tão fofinha que ela era, de cor-de-rosinha acetinado vestida, asinhas felpudinhas e saltitantes como só as asinhas dos anjinhos saltitam, que me livrou!
Mas, espera lá... Não sabes?
"Voy ali *
qualquer coisa imperceptível*. Pedir segunda opiniao!"
Foi mesmo o anjinho! Uma médica sem medo de dizer que não sabe, sem medo de pedir ajuda num diagnóstico, um conselho sobre por que via seguir, pois já calcorreou todas quantas achou possíveis!
Chega outra médica -que ou também é Espanhola ou, como eu, também apreende os sotaques que ouve-, e a primeira pergunta-lhe "O que achas disto?" Perdida que estava no castanho dos meus olhos, precisou de um sussurrante "el braço" ao ouvido para sentir o choque que a diferença de tamanho dos meus dois braços causa.
Conferenciaram:
1ª. médica: "Não tem nada no ombro, *
qualquer coisa, qualquer coisa, só percebi "axilas"*, "Pensei que pudesse ser uma tendinite. Mas as tendinites doem!
2ª. médica, virada para mim: "E não te dói?"
eu: "Não."
2ª. médica: *
Apalpa, apalpa, apalpa* "Não te dói?"
eu: "Não"
2ª. médica: E desde quando está isto assim?
eu e a 1ª. médica em uníssono, qual Coro de Santo Amaro de Oeiras: "Desde ontem ao final da manhã"
2ª. médica: Se fosse uma *nome de uma inflamação qualquer* também doía..." *Apalpa, apalpa, apa...*
eu: "OLHA! Aí dói!"
as três, sentindo que tínhamos perante nós o Messias recém-nascido: "Awww..."
2ª. médica: "Podia ser uma fractura do cotovelo. Mas, quer dizer, não doía só ao carregar..."
1ª. médica: "Ela diz que fez esforço com o braço..."
2ª. médica: "Fizeste esforço com o braço?"
eu: "Sim." (até porque estou aqui, não deixava a Sra. Dra. Primeira mentir)
1ª médica, tentando acabar o raciocínio: "...podia ser uma ruptura muscular..."
as duas médicas em uníssono: "Mas também doía!"
1ª. médica: "Deixa-me ver as tuas mãos"
Nada.
2ª. médica, apertando-me o bíceps: "Mas isto está duro!"
eu, comigo mesma, que não levava botões comigo: Pois, é um músculo!
A confusão estava instalada no consultório. Já se entranhara nas paredes e parecia não haver esfregona, detergente, compêndio de Medicina capaz de a limpar dali.
2ª. médica: "Quem é o médico de família dela? Quem é o teu médico de família?"
eu, enquanto a 1ª. médica encolhia os ombros: "Dr.
Coisito"
2ª. médica para a 1ª., como a quem aquela informação -que a mim também me pareceu desnecessária- o foi de facto: "É dar um anti-inflamatório e vigiar..."
1ª. médica, para a 2ª.: "Ficaste como eu!"
2ª. médica, virada para mim, enquanto me continuava a cutucar o único sítio onde dói: "O ideal era fazer uma ecografia, mas aqui não podemos..."
eu, em pensamento: "E escrever um daqueles formulários que para aí têm com nomes que nada têm a ver com a coisa, a requisitar uma?"
Parece que não...
A 2ª. médica sai, a primeira escreve no computador, às tantas, uma luz ilumina-a de baixo para cima, ela levanta-se e: "Deixa-me só auscultar-te, não vá teres um sopro no coração e ter resultado num caso muito raro para a tua idade!"
Nem tive vagar para processar mais uma informação dada assim à bruta, sem preliminares nem nada, a senhora lá me auscultou em três ou quatro sítios diferentes: "Está tudo bem!"
E cá estou eu, com um anti-inflamatório no bucho, o braço -parece-me- cada vez mais gordo, e com a confusão lançada, mais uma vez!
Raquel: uma incompreendida até pela Medicina!