Dona Flor ficou conhecida pelos seus dois maridos. Dona Raquel, como odeia ser tratada, ficará eternamente conhecida pelas suas vergonhas. Aonde quer que vá, leva-as consigo, porque a companhia que lhe fazem é tanta que Raquel acha que elas também merecem viajar e conhecer e tudo e tudo e tudo.
Acto I
Indicação cénica: Cozinha, manhã cedo (quarto das 8h às 12h), Raquel é posta a descascar alhos.
Há uma característica muito boa (entre outras extremamente boas) a meu respeito: na cozinha tenho muito jeito para pôr a louça na máquina (já tirar, nem sempre, já que pode calhar de ir parar ao hospital). Claro que também consigo lavá-la à mão, consigo mesmo fazer gelatina -mas leio sempre a "receita", para prevenir dissabores-; chá, mas nunca com ervinhas porque as quantidades e eu nunca nos demos muito bem; massa, mas só para mim porque os meus gostos são incomparáveis; e fiz uns mexidos divinais no Natal passado mas nunca mais me meto noutra não vá correr menos bem. Fora isso, é esquecer.
Ora de alhos, que sei eu? Sei que são muito bons para a circulação e maus para o hálito, e que vêm em aglomerados. Quer dizer, eu sei o que é um alho! Sei que é branco-amarelado e que impõem serem descascados para deles se tirar proveito. Quando me dizem "descasca estes alhos" eu "ya, tudo bem!", porque a Raquel nunca se nega a nada e não mostra nunca ignorância nem incompetência. Se não sabe, espreita disfarçadamente para quem saiba e resolve melhor ou, quase nunca, pior, a situação.
Aglomerado de alhos na banca à sua frente. Raquel não tem meias medidas e desata a arrancar os dentes um a um e a pô-los de lado, convencidérrima de que aquilo era descascar alhos.
Não sei se por ter dado conta da minha nabice, se só para adiantar serviço, um dos cozinheiros prostra-se à minha frente a, realmente, descascar alhos. Ao ver aquilo, Raquel tem micro-acessos de riso, que tenta que passem despercebidos tão bem quanto a azelhice que escancarou ali no meio. Pega então nos dentinhos que tinha posto de lado, a tentar que a imagem que passa fosse a de organização e não de falta de saber, e foi descascando-os enquanto engolia o riso da melhor maneira possível.
Acto II
Indicação cénica: Mar Mediterrâneo. Raquel, enfiada na água até um bocadito acima da cintura, presta-se a tentar usar um snorkel
O Mediterrâneo tem tanto de límpido quanto de salgado. Da primeira, advém a vontade de fazer snorkling e ver peixinhos e coisinhas lindas debaixo de água; da segunda advém a nula praticidade em mergulhar. Ora eu, que quando quero deixar alguém perdido de riso numa piscina basta tentar sentar-me no fundo da mesma, porque devo ser arraçada de ave e ter ossos ocos, e flutuo melhor que o bacalhau de molho, tive a ideia mirabolante de querer experimentar uns óculos e um snorkel, "porque não deve ser nada difícil, é só respirar pela boca!"
Pedi os apetrechos emprestados a um jovem do grupo, preparo-me toda -óculos desde a testa até ao lábio superior, snorkel preso nos dentes- e, prevenida como gosto de ser, tento respirar com a coisa, em seco. Perfeito! Mergulho então, já com imagens de cavalos marinhos amarelos e raias cinza metálico e polvos roxinhos na mente, o meu rabo é um fraco face ao sal e empina-se todo, troco as imagens de peixinhos pela de patos de "cabeça para baixo, rabinho para o ar", vá-se lá saber porquê, dou uma inspiradela pelo nariz, combato contra o meu próprio CO2, dou logo três ou quatro arfadelas pela boca, tento bater as perninhas para tentar minimizar os danos, atrapalhei-me toda e upa cá para cima. Olho em volta, na esperança de ninguém estar a olhar para mim, mas os óculos, para além de serem de plástico estão todos embaciados, penso "mulher, à segunda é que é!", volto a enfiar a cabeça na água, o rabo volta a ficar de fora e eu quero lá saber, quero é peixinhos coloridos, carai!, duas ou três arfadelas, quase me sinto sufocar com o meu próprio CO2, venho à tona, e vejo o dono dos artefactos a olhar para mim, a pôr-me a mão num ombro e a perguntar, com um misto de pânico e preocupação: "tu estás bem?". "Não!", disse num sopro enquanto tentava normalizar a respiração e o compassar do coração. "Tenta outra vez!", diz-me ele. "Achas?! Quase morri desta! Que raio de notícia dariam à minha mãe? 'Olhe, a sua menina morreu sufocada no meio do mar'! Deixa lá isso. Toma, vai lá explorar, e depois contas-me tudo!"
Acto III
Indicação cénica: Cobertas, meio da tarde mas escuro como breu, que havia gente a dormir. Raquel tenta chegar-se à sua cama para ir buscar os óculos.
Relembro, caso tenham esquecido, que eu dormia num espaço exíguo com mais 5 miúdas. Como se passam muitos dias no mar, longe de comodidades como máquinas de lavar a roupa, a roupa interior era lavada à mão e posta a secar em fios que atravessavam os 7mm de largura do corredor que separava os nossos beliches. Farta que eu estava de levar com cuecas e sutiãs na testa de cada vez que ia à cama, decidi-me a entrar no corredor semi-curvada para evitar os obstáculos (um ultraje, devo dizer, para todos os rapazes que me ouviam queixar da minha triste sina: "Mau, dizes tu?! Quem me dera levar com cuecas na cara de cada vez que me deito!" Adiante...)
Vou eu, já toda confiante na minha destreza em andar num navio em alto mar, entro na coberta, faço a primeira curva sem espinhas, curvo-me à entrada do corredor, vou feita touro, toda pujante e intocável e pumba! com a cabeça contra o traseiro da miúda do andar de cima, que estava apoiada com os pés nas camas de baixo. "¿Quién es?, ¿quién es?", grita ela atarantada.
Não lhe disse quem era, pois que me pisguei de fininho dali para fora para não tornar aquele momento mais confrangedor, que ainda ia haver mais convívio, mais dias ali enfiados, e eu dispenso mexericos. Quanto aos óculos, passei bem sem eles, e antes me tivesse dado conta disso mesmo mais cedo...
[para estas, pois que não tenho fotos, com certeza que não. E só posso esperar que não as haja...]